O trigo de hoje é o mesmo que nossos avós consumiam? Existe trigo bom e trigo ruim? Dá para absolver o glúten das acusações de vilão?
Reino Pécala Rae, consultor técnico da Abitrigo (Associação Brasileira da Indústria do Trigo), responde a essas e outras dúvidas sobre esse ingrediente milenar.
Trigo é Saúde: Um dos argumentos da turma “gluten-free” é que o trigo que consumimos hoje não seria o mesmo de antigamente, ou seja, seria geneticamente modificado. Como explicar essa questão?
Reino Pécala Rae: Desde o tempo dos sumérios a farinha de trigo tem glúten. Ou melhor, possui gluteninas e gliadinas que, com água, formam o glúten. Nunca houve nenhuma mudança no sentido de alterar suas características. Acontece que o teor dessas proteínas muda um pouco de variedade para variedade de trigo. Os pesquisadores, chamados de “melhoristas”, vão cruzando variedades com o objetivo de obter trigos menos exigentes em relação à fertilidade do solo, menos suscetíveis a doenças e pragas e mais adequados aos produtos a serem fabricados.
Trigo é Saúde: Então não existe trigo melhor ou pior?
Reino Pécala Rae: Não existe trigo ruim, apenas trigo inadequado para aplicações específicas – há o que funciona melhor, por exemplo, em pães do que em biscoitos. Do ponto de vista da qualidade, não existe nenhuma pesquisa comparando as diferenças genéticas do trigo consumido pelos sumérios e o que hoje plantamos e colhemos. Nunca se descobriu qualquer diferença que seja desfavorável ao ser humano. Também não há pesquisa fazendo tal comparação entre o glúten atual e o do tempo do Rei Sol, Luis XIV, na segunda metade do século XIV. Os alimentos despertam nos seres humanos um interesse desproporcional, que os levam a crenças que, depois de desmascaradas, são substituídas por outras.
Trigo é Saúde: Como é o trabalho do “melhorista” de trigo?
Reino Pécala Rae: É um trabalho que requer paciência. Suponhamos que ele queira cruzar uma variedade de boa produtividade com outra, resistente a determinadas doenças. Será preciso tentar muitas vezes para conseguir a combinação desejada. É como na história da linda atriz Isadora Duncan, que se encontrou com Bernard Shaw em um evento e disse a ele que os dois deveriam se casar, porque teriam filhos lindos (como ela) e inteligentes (como ele); ao que Bernard Shaw retrucou: “E se acontecer o contrário?”.
Trigo é Saúde: Qual é o maior engano das pessoas a respeito do trigo?
Reino Pécala Rae: Entre as crenças sem fundamento que se propagam, há a de que farinha “refinada” faz mal. Como se fosse um tratamento químico, que introduzisse na farinha algum elemento nocivo. Um absurdo. Farinha de trigo não se “refina”. Apenas o grão é moído e, por simples peneiramento, separa-se o que não é endosperma, isto é, casca e gérmen. Separa-se o tegumento para melhorar o desempenho da farinha na produção de derivados – pães, massas, biscoitos, etc.
Trigo é Saúde: Como o senhor defende o glúten das acusações de vilão da alimentação?
Reino Pécala Rae: Veja um exemplo: o camarão é considerado uma iguaria. Caro, porque é escasso. Certas pessoas, entretanto, não podem comer camarão. São alérgicas. O camarão não tem culpa, não é defeituoso e nem modificado geneticamente. A moda consiste em culpar mudanças genéticas. Apenas uns são alérgicos, seja ao camarão, seja a outros crustáceos. O leite, todos sabem, é um alimento riquíssimo, mas uma pequena fração da população é intolerante à lactose. Algo como 1% da população desenvolve intolerância ao glúten – são os chamados “celíacos”. Novamente, o problema não está no trigo, e sim no glúten. A grande dificuldade em desfazer as lendas em torno do glúten é que é quase impossível provar que não existe o que não existe. Compete ao acusador o ônus da prova, e os que atribuem malefícios ao glúten deveriam fazer a prova, o que nunca aconteceu. A onda contra o glúten passará, como outras se foram.